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quarta-feira, 27 de agosto de 2025
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Bipolaridade vai além das mudanças de humor – e pode afetar o corpo inteiro

Há mais de duas décadas, sabe-se que pessoas com transtorno bipolar padecem de mortalidade precoce. Em média, vivem entre 10 e 12 anos menos que a massa da população. A associação automática que se fazia entre uma coisa e outra era com o alto índice de suicídio entre elas – cerca de 15 vezes maior que a média.

Mas pesquisas recentes mostram que a causa principal de morte nos pacientes bipolares extrapola a fronteira da doença mental e estaria muito mais ligada ao estilo de vida – e que, portanto, essa brevidade da existência pode ser revertida.

“Estudos dos últimos 10 anos têm revelado que a principal causa de mortalidade precoce entre pessoas com transtorno bipolar é a doença cardiovascular, aproximadamente 80% a mais do que a população em geral”, diz o psiquiatra Beny Lafer, coordenador do Programa de Transtorno Bipolar (Proman) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

infarto do miocárdio e o AVC, por exemplo, se fazem muito presentes nos prontuários dos bipolares.

Essa grande prevalência de doença cardiovascular teria ligação com relapsos cotidianos relativos à saúde. Os pacientes bipolares se mostram mais sedentários, bebem e fumam mais e, em geral, se alimentam com mais ultraprocessados.

Além disso, tomam certas medicações, principalmente os antipsicóticos atípicos, que podem causar problemas metabólicos, como resistência à insulina, obesidade e aumento de triglicérides e colesterol. “Essa prevalência é uma questão multifatorial”, destaca Lafer.

Cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) chegaram a uma dedução semelhante. Em artigo publicado na revista Trends in Psychiatry and Psychotherapy em junho, eles avaliaram o padrão de proteínas presente em pessoas com transtorno bipolar e o correlacionaram a condições como diabeteshipertensão e outras alterações metabólicas que levam a doenças cardiovasculares.

As proteínas alteradas estariam relacionadas a processos biológicos como o metabolismo lipídico (colesterol e triglicerídeos aumentados), o sistema imunológico (inflamação sistêmica) e a cascata de coagulação (predisposição a infarto e AVC).

“Essas rotas alteradas fazem todo o sentido com as doenças cardiovasculares e a mortalidade aumentada entre as pessoas com transtorno bipolar”, diz o psiquiatra Flávio Kapczinski, supervisor do estudo, professor da UFRGS e diretor do Laboratório de Psiquiatria Molecular do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Os pesquisadores ponderam que esse perfil proteico pode ser consequência de um estilo de vida errante numa doença em progressão. Pessoas com doença mental grave como a bipolaridade frequentemente não conseguem se engajar em atividades de regulação de estresse, têm o ritmo de sono alterado, apresentam sobrepeso e por vezes abusam de substâncias ilícitas, como maconha e cocaína – normalmente porque estão em busca de redimir o sofrimento interno e externo.

“A doença mental grave não é apenas de ordem psicológica. Ela tem um componente físico importante”, reafirma Kapczinski.

Montanha-russa de humor

O transtorno bipolar é caracterizado por um sobe-e-desce de humor, com episódios de mania (com euforia e energia excessivas) e hipomania (euforia mais branda) alternados com períodos de depressão. O quadro atinge cerca de 3% da população brasileira, algo em torno de 6 milhões de pessoas, segundo a Associação Brasileira de Transtorno Bipolar (ABTB).

O componente hereditário é forte. “A herdabilidade da doença bipolar é de 80%, a mais alta dentre todas as doenças mentais”, diz Kapczinski. Quem tem um parente em primeiro grau com a doença tem 10 vezes mais risco de desenvolvê-la.

A doença afeta praticamente na mesma medida homens e mulheres e pode ter início em qualquer fase da vida, mas o pico é entre os 19 e 21 anos. Sem tratamento, o intervalo entre o primeiro e o segundo episódio pode levar três anos; do segundo para o terceiro, dois anos; do terceiro para o quarto, um ano; e cada vez fica mais frequente. “Ao longo do tempo, a doença vai tomando um curso mais maligno, mais grave”, diz Lafer.

A diferença entre mania e hipomania está nas consequências do impacto que elas têm na vida da pessoa. No episódio de mania, a pessoa exibe um humor expansivo e irritável, muita energia, diminuição da necessidade de sono, agitação psicomotora, aceleração do pensamento, ideias de grandeza, além de aumento da autoestima, da impulsividade e da libido, por vezes acompanhados de delírios e alucinações.

“A mania é sempre muito incapacitante na vida do indivíduo, sendo às vezes necessária a internação”, afirma Lafer. Já a hipomania seria um leve aumento de energia e de aceleração, com diminuição da necessidade de sono, numa intensidade muitas vezes percebida apenas pelas pessoas mais próximas.

O que costuma levar os bipolares ao médico é um episódio de depressão, e não de hipomania, porque a euforia tem seu apelo, ainda mais na sociedade do espetáculo e das bets. “Existe uma certa glamourização em torno da euforia, histórias de artistas muito criativos no período de hipomania e de mania, que escreviam muito, pintavam muito.

Mas isso é exceção”, diz Lafer. “A mania, na maior parte das pessoas, é extremamente destrutiva, pois muitas gastam todo o dinheiro que tinham economizado, destroem relacionamentos, rompem sociedades no trabalho por comportamentos inadequados e agressivos.”

Kapczinski alerta que uma avaliação superficial do quadro de depressão pode ser bastante deletéria. “Se o profissional não observar o histórico familiar e o comportamento pregresso do paciente, a pessoa pode sair do atendimento com um tratamento para depressão.

Caso tenha uma bipolaridade latente, os antidepressivos, isoladamente, podem ser um dos fatores para desencadear o transtorno bipolar.”

Ajuste farmacológico e psicoeducação

Ainda que se acerte o diagnóstico, a taxa de desistência do tratamento é alta: cerca de 50%. O que costuma motivar o abandono da medicação são seus efeitos colaterais, entre eles o aumento de peso. Mas a pessoa também pode se sentir sedada, apática, com uma certa lentificação do raciocínio, ou então querer recuperar a agilidade mental e a valorização social da mania e da hipomania.

“É possível ajustar a medicação e a dose para estabilizar a pessoa sem afetar sua criatividade ou personalidade, mas isso tem uma sintonia fina, leva tempo e, se o indivíduo não tem muita paciência, vai querer parar”, diz Kapczinski. “Só que, quando para, ocorrem as crises.”

Uma alternativa que pode vir casada com o ajuste da medicação é a psicoeducação. O Programa de Transtornos Bipolares do Instituto de Pesquisa Médica Stanley, em Barcelona, organização sem fins lucrativos que apoia pesquisas sobre as causas e tratamentos do transtorno bipolar e da esquizofrenia, sugere essa ferramenta não farmacológica.

O objetivo é, basicamente, aumentar a adesão ao tratamento, ensinar o reconhecimento rápido de recaídas e propor questões sobre a regularidade do estilo de vida. Tudo a partir da informação.

“A psicoeducação é um elemento-chave para uma boa prática médica e cobre um direito fundamental de nossos pacientes: o de serem informados sobre sua doença”, afirmam os pesquisadores em artigo sobre o tema publicado na Bipolar Disorders.

Eles enfatizam, porém, que a psicoeducação deve sempre ser realizada durante a eutimia, ou seja, no período de remissão de sintomas, no qual o indivíduo se encontra funcionalmente integrado nas suas atividades diárias.

Segundo os pesquisadores, os pacientes em estado depressivo podem reter somente os aspectos negativos da informação psicoeducacional, enquanto os maníacos podem ser destrutivos e não absorver nada das informações devido à distratibilidade, que é a dificuldade em manter o foco.

O Proman, da USP, também se empenha em intervenções não farmacológicas, como psicoterapia, exercícios e mudanças de hábitos alimentares. Não à toa, sua equipe é multidisciplinar e conta com médicos, psiquiatras, psicólogos, neuropsicólogos, educadores físicos, nutricionistas, biólogos, enfermeiras, endocrinologistas, além de pesquisadores colaboradores.

Lafer também é presidente, juntamente com a brasileira Elisa Brietzke, que vive no Canadá, de uma força-tarefa da Sociedade Internacional de Transtorno Bipolar chamada NExT (Nutrition Exercise Treatment), voltada à nutrição e ao exercício.

“Queremos juntar toda a literatura para trazer mudanças de hábitos e estilo de vida para o tratamento do transtorno bipolar de forma mais sistematizada”, diz ele.

“A gente não quer só tratar a depressão e a mania, a gente quer atuar no campo nutricional e no da atividade física para reverter alguns desses fatores associados à mortalidade cardiovascular. A gente quer, enfim, que a pessoa viva melhor, mais e com qualidade de vida.”

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